Este blog tem como objetivo dividir algumas idéias, pensamentos e leituras sobre o tema da violência escolar. Tenho a expectativa de encontrar comentadores, pessoas que também tenham interesse no assunto, que queiram compartilhar relatos, depoimentos, fatos, que dêem sugestões ou que elaborem críticas. Este é apenas o início da minha caminhada e estou certa de que há muito conhecimento a ser construído.

sábado, 26 de junho de 2010

Violência escolar tratada como crime público

Esta matéria foi publicada no Diário de Notícias, jornal português:

http://dn.sapo.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1532277

O que você pensa sobre essas medidas e comentários?

terça-feira, 30 de março de 2010

PODER E VIOLÊNCIA EM ARENDT

Segundo Hannah Arendt, historicamente, sempre houve um consenso em se equacionar poder e violência. Os mais diversos pensadores, de esquerda e de direita, sempre definiram a violência como uma manifestação do poder.

Todavia, para a autora, violência e poder não são o mesmo. Da mesma maneira que força, vigor e autoridade também não são sinônimos. Se ao longo da tradição política ocidental estes termos foram usados como tal, significa apenas que o tema político central e mais importante sempre foi “quem domina quem”. Nas palavras de Arendt (2001)

O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que alguém está no poder, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome. A partir do momento em que o grupo, do qual se origina o poder desde o começo, desaparece, “seu poder” também se esvanece. Em seu uso corrente, quando falamos de um “homem poderoso” ou de uma “personalidade poderosa”, já usamos a palavra “poder” metaforicamente; aquilo a que no referimos sem a metáfora é o vigor.

O vigor inequivocamente designa lago no singular, uma entidade individual; é a propriedade inerente a um objeto ou pessoa e pertence ao seu caráter, podendo provar-se a si mesmo na relação com outras coisas ou pessoas, mas sendo essencialmente diferente delas. Mesmo o vigor do indivíduo mais forte sempre pode ser sobrepujado pelos muitos, que não raro entrarão em acordo para nenhum outro propósito senão o de arruinar o vigor, precisamente por causa de sua independência peculiar. É da natureza de um grupo e de seu poder voltar-se contra a independência, a propriedade do vigor individual.

A força, que frequentemente em pregamos no discurso cotidiano como sinônimo da violência, especialmente se esta serve como um meio de coerção, deveria ser reservada, na linguagem terminológica, às “forças da natureza”, ou à “força das circunstâncias”, isto é, deveria indicar energia liberada por movimentos físicos ou sociais.

A autoridade, relacionando-se ao mais enganoso destes fenômenos e, portanto, sendo um termo do qual se abusa com freqüência, pode ser investida em pessoas – há algo como a autoridade pessoal, por exemplo, na relação entre a criança e seus pais, entre aluno e professor; ou pode ser investida em cargo como, por exemplo, no Senado romano; ou em postos hierárquicos da Igreja. Sua insígnia é o reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede que obedeçam; nem a coerção, nem a persuasão são necessárias. Conservar a autoridade requer respeito pela pessoa ou pelo cargo. O maior inimigo da autoridade é, portanto, o desprezo, e o mais seguro meio para miná-la é a risada.

Finalmente, a violência distingue-se por seu caráter instrumental. Fenomenologicamente, ela está próxima do vigor, posto que os implementos da violência, como todas as outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural até que, em seu último estágio de desenvolvimento, possam substituí-lo.

Percebe-se que, para Arendt, poder e violência são fenômenos relacionados, que a chave para a compreensão da violência é a forma como se concebe o poder. A autora volta a sua análise à antiguidade clássica para recuperar um conceito de poder que só se manifesta no espaço público, entre os homens, no discurso e na ação, no acordo entre muitas vontades e intenções.

Neste contexto, o poder pertence a um grupo e não pode ser confundido com um atributo individual como a força ou o vigor. Embora poder e violência freqüentemente apareçam juntos, nas sociedades políticas, quanto mais poder, menos violência, e vice-versa.

Em geral, a violência surge como último recurso, como alternativa para manter a estrutura de poder. Entretanto, Arendt ressalta que a violência é o limite da política e nunca poderá assegurar ou instaurar a liberdade. A violência é dominação, obediência obtida pela coerção. Jamais fortalece ou mantém o poder, ao contrário, só o destrói. Onde a violência se manifesta, o poder desaparece, uma vez que este só pode ser compreendido como a possibilidade de agir, de tomar decisões e de estabelecer acordos em conjunto, pelo diálogo.

Referência Bibliográfica

ARENDT, H. Sobre a violência. 3 ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Diferenciações entre violência e agressividade

Quando pensamos em tratar o tema da violência escolar, é importante ter claras algumas definições que, por vezes, são complexas. Podemos citar as tentativas de diferenciação entre violência e agressividade.

O Dicionário Aurélio On-line traz as seguintes definições:

Violência: s.f. Qualidade ou caráter de violento. Ação violenta: cometer violências. Ato ou efeito de violentar. Opressão, tirania: regime de violência. Direito: Constrangimento físico ou moral exercido sobre alguém.

Agressao: s.f. Ataque violento e intempestivo; provocação. Insulto, ofensa.

Agressividade: s.f. Tendência a atacar, a provocar. Psicologia: Forma de desequilíbrio psíquico que se traduz por uma hostilidade permanente diante de outrem.

Aprofundando um pouco mais o tema, o Dicionário de Psicologia Roland Doron & Françoise Parot conceitua os termos da seguinte forma:

Violência: A violência física faz reinar a lei do mais forte, oprimindo indivíduos ou grupos mais fracos. Em que consiste a violência psíquica? Na perspectiva econômica ou quantitativa em psicanálise, S. Freud descreveu a violência intrapsíquica por excelência, aquela que a pulsão, pela força de seu impulso, exerce sobre o aparelho psíquico e, mais particularmente, sobre o ego/eu do indivíduo. E isso, seja qual for a natureza da pulsão. Um desejo amoroso pode ser violento; a violência não é necessariamente obra da agressividade: um ato agressivo, por exemplo uma crítica privada ou uma manifestação pública, pode ser não violento. Nas relações intersubjetivas, os psicólogos descreveram duas grandes formas de violência moral, exercida pelas pessoas dominantes para prolongar e reforçar a sua superioridade: a ameaça da retirada do amor e da proteção (mecanismos freqüentes na neurose), e o uso perverso do raciocínio, que submete a vítima a contradições lógicas, a comunicações paradoxais às quais lhe é proibido escapar e cuja culpa se volta contra ela: double bind, esforços para enlouquecer o outro (H. Searles) (mecanismos freqüentes nos estados limítrofes e na esquizofrenia). De maneira mais geral, a posse de um bem, de um saber, de uma habilidade pode ser sentida, pelos que são desprovidos deles, como uma violência que lhes é feita por parte do possuidor. Daí sua violência como reação. O modelo inconsciente seria, conforme M. Klein, a identificação projetiva do bebê que penetra imaginariamente no seio da mãe para destruir nele os órgãos e os produtos de fecundidade. Com a expressão “violência da interpretação”, P. Aulagnier descreveu a situação da criancinha, desprovida de linguagem e que deve deixar que sua mãe se arvore em porta-voz de suas necessidades físicas e de seus estados psíquicos. J. Bergeret chamou de “violência fundamental” a situação do bebê confrontado com os maus-tratos dos adultos e com uma regra arcaica de equilíbrio dos vivos e dos mortos: para que um viva, o outro deve morrer.

D. Anzieu

Agressividade: Disposição permanente para se engajar em condutas de agressão reais ou fantasiosas. Podem-se distinguir dois aspectos: uma agressividade maligna, destrutiva, e uma agressividade benigna, em que a combatividade se exprime pela competição e pela criatividade. A agressividade é considerada pela psicanálise, conforme as escolas, como uma pulsão unitária e independente, a projeção do instinto [pulsão] de morte ou de destruição (S. Freud) ou como uma manifestação do desejo de poder sobre o outro e de afirmação de si (A. Adler). As pesquisas interculturais mostraram que a grande variedade de normas que regem a agressividade e a combatividade em diferentes culturas.

G. Moser

Há que se mencionar que G. Moser também elaborou a definição de agressão no mesmo dicionário, ressaltando que não há uma “acepção homogênea do termo agressão. As principais posições são inconciliáveis”. Por exemplo: “na perspectiva freudiana, a agressão remete à agressividade. É considerada como um comportamento espontâneo, saído de uma pulsão unitária e fundamental, radicada na esfera biológica, e cuja energia deve imperativamente ser descarregada”. Já em psicologia social essa energia pulsional autônoma é contestada e essa pulsão é vista, quando muito, como “uma disposição para agredir, atualizada por fatores situacionais”. Para os comportamentalistas, contudo, os comportamentos de agressão são resultado de aprendizagens, negando a origem endógena do comportamento.

Pelas definições apresentadas (e levando-se em consideração que recorri apenas a dois dicionários) o mínimo que se pode constatar é o quanto os termos agressividade, agressão e violência são difíceis de se diferenciar e definir. Se adotarmos uma perspectiva psicanalítica freudiana, por exemplo, podemos correr o risco de enfatizar aspectos biológicos e individuais e culpabilizar o indivíduo. Se, ao invés disso, adotamos uma perspectiva comportamental ou social corremos o risco de valorizar demais o meio, o ambiente, e desconsiderar o papel ativo do sujeito.

Fato é que o processo civilizatório em si, em algumas culturas mais e em outras menos, é violento, imprimindo ou tentando introjetar nos indivíduos condutas, comportamentos, modos de pensar, sentir ou de se expressar. Evidentemente, isso não dispensa o estudo, as tentativas de compreensão e a necessidade de se desenvolver um posicionamento com relação ao tema. O conhecimento é uma condição necessária para se traçar estratégias de ação ou prevenção.

O importante é evitar determinismos de qualquer tipo e pensar que papel (ou papéis) a educação ou as escolas podem exercer em assuntos como a violência escolar, a agressão ou o bullying.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Agradecimentos aos participantes da pesquisa sobre violência

Hoje quero agradecer mais uma vez aos profissionais da rede pública de ensino de São Paulo que concordaram em participar do meu projeto de pesquisa "Violência escolar: contribuições em Hannah Arendt". Muito obrigada pela abertura, pelo espaço, por cederem o seu tempo e dividirem comigo as suas experiências, conhecimentos, vivências, pensamentos e pontos de vista sobre o tema. As suas falas, riquíssimas, serão fonte para muitas das minhas reflexões. A ética em pesquisa exigiu o anonimato dos participantes, que foi devidamente preservado, mas alguns trechos das nossas conversas podem ser lidos nos links da barra lateral. Serei sempre imensamente grata a todos vocês!!!

terça-feira, 16 de março de 2010

Projeto de pesquisa sobre a violência escolar faz aniversário

Há um ano, em março de 2009, o projeto de pesquisa sobre violência escolar que desenvolvo como membro do NESE (Núcleo de Estudos de Sexualidade e Educação) recebeu o apoio do PIBIC Mackenzie e foi publicado pela Pandora - Revista de humanidade e de criatividade filosófica e literária. Este projeto foi o ponto de partida para todos os estudos que tenho realizado e para a elaboração de textos e comunicações sobre o tema. Confira o texto na íntegra em http://revistapandora.sites.uol.com.br/violencia.htm.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Um ensaio sobre a violência escolar e as contribuições encontradas no pensamento de Hannah Arendt

Por Simone Rosa

1. INTRODUÇÃO

Surpreendentemente, apesar do aumento do que se pode chamar hoje de “violência escolar”, a discussão sobre o tema pouco tem sido abordada entre os teóricos e profissionais da educação. Sposito (2001), em seu balanço da pesquisa sobre a violência escolar no Brasil após 1980, mostra que, apesar do intenso debate público, a pesquisa sobre a violência nas escolas pode ser considerada incipiente nos diversos organismos públicos da educação, em institutos privados de pesquisa ou mesmo nos meios acadêmicos (especialmente nos programas de pós-graduação).

A autora observa que no Brasil, historicamente, a emergência da temática da violência escolar esteve ligada à questão democrática. Durante a década de 1980, a concepção de violência escolar estava relacionada, sobretudo, à depredação dos prédios escolares (patrimônio público). A mídia, grande divulgadora da violência nos ambientes escolares, agia principalmente como espaço de denúncia. Buscou-se, durante esse período, estabelecer modelos democráticos de gestão escolar e envolver a comunidade local na tomada de decisões. As principais medidas adotadas pelo poder público vincularam-se à segurança das unidades escolares (marcada pela atuação das agências policiais) e a ações educativas no sentido de adaptar a cultura escolar às características do seu público.

Contudo, o crescimento da violência em diversas cidades do país, nos últimos anos da década de 1980 e nos primeiros anos da década de 1990, causado principalmente pela ação do crime organizado e pelo tráfico de drogas, fomentou o debate público acerca do tema da segurança. A mídia passou a dar visibilidade esporádica a casos extremos, como homicídios ou atos graves de vandalismo e a concepção de violência escolar passou a considerar as interações sociais de grupos de alunos entre si ou em suas relações com o mundo adulto. O início da década de 1990 assistiu ao tratamento da violência escolar como questão de segurança e viu desaparecerem os debates sobre a abertura democrática e sobre as propostas de cunho educativo (SPOSITO, 2001).

Iniciativas públicas para reduzir a violência nas escolas, algumas delas em parcerias com organizações não-governamentais (ONG´s) ou segmentos da sociedade civil, passaram a emergir nos últimos anos da década de 1990, de certa forma retomando a necessidade de ações educativas e debates acerca da democratização das unidades e estabelecimentos escolares (SPOSITO, 2001).

Waiselfisz e Athias, em parceria com a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), publicaram em 2005 o Mapa da violência de São Paulo, cujo objetivo principal foi traçar um panorama geral (quantitativo) da ocorrência de violência no Estado de São Paulo. Os resultados demonstram que entre 1993 e 2003 o número de casos de homicídios e mortes causadas por armas de fogo aumentaram significativamente e que os jovens (faixa etária de 15 a 24 anos) são as principais vítimas da violência.

Há, contudo, algumas peculiaridades da pesquisa que vale a pena salientar. Em primeiro lugar, o levantamento de dados realizado considerou os óbitos, que não representam todos os casos de violência e nem constituem a sua maioria, mas, segundo Waiselfisz e Athias (2005) expressam o seu extremo. Em segundo lugar, apesar do aumento do número de casos de óbito por violência no decênio de 1993 a 2003, os anos de 2000 a 2003 revelaram uma queda desses números em São Paulo, o que vai na contramão da realidade nacional. Os autores atribuem essa redução a diversas iniciativas de diferentes agentes sociais e a uma particular capacidade de mobilização e organização da sociedade civil paulista, especialmente em torno de medidas de prevenção à violência. Por último, os resultados apontam para um fenômeno de interiorização da violência no Estado de São Paulo, ou seja, nas regiões do interior do Estado não se verifica a redução nos índices de homicídio observados na capital e nas regiões metropolitanas.

Abramovay e Rua (2002), em pesquisa de âmbito nacional realizada em parceria com a UNESCO e o apoio de entidades como o USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) e o Banco Mundial afirmam que a temática da violência nas escolas constitui ponto de confluência de processos sociopolíticos, econômicos e culturais. A compreensão do fenômeno requer atenção tanto a aspectos externos às instituições de ensino (variáveis exógenas) como as questões de gênero, as relações raciais, as situações familiares, a influência das mídias e o espaço social das escolas; quanto a aspectos internos (variáveis endógenas) como a idade, o nível de escolaridade dos estudantes, as regras, disciplina e o sistema de punições expressos no projeto político pedagógico das escolas e o comportamento do corpo docente em relação aos alunos e à prática educacional em geral. Além disso, as autoras apropriam-se de classificações (CHARLOT, ÉMIN, 1997; DEBARBIEUX, 1996 apud ABRAMOVAY, RUA, 2002) que ampliam o conceito de violência escolar, levando em conta as incivilidades (humilhações, falta de respeito), a violência simbólica ou institucional (perda do sentimento de pertença, insegurança, incompreensão do significado e sensações de desprazer relacionadas ao ato educacional, imposições e abusos de poder) e os atos de violência propriamente ditos (agressões físicas, sexuais, depredações, crimes e delitos). A intenção é uma análise do fenômeno que leve em conta a transdisciplinaridade, a multidisciplinaridade e a pluricausalidade, percebendo, inclusive, como aspectos macrossociais favorecem a violência nas escolas.

A violência nas escolas desconstrói representações sociais fundantes de infância e da própria escola como local de formação, de conhecimento, de educação, de diálogo, de ética. Os estudos de Abramovay (2003) sobre escolas inovadoras e a já referida pesquisa de Abramovay e Rua (2002) mostram que os estudantes são o grupo que mais está envolvido com a violência nas escolas, seja como agressores ou como vítimas e que as brigas são as manifestações perceptíveis mais corriqueiras e que mais banalizam a violência. As autoras sugerem e apontam alternativas de ação e prevenção bem sucedidas que priorizam a construção de uma cultura de paz, o desenvolvimento de atitudes democráticas, a participação, a valorização e o diálogo com os protagonistas e os atores das comunidades locais e a busca de soluções para o problema na coletividade.

Nota-se pelos estudos apresentados que, apesar da existência de projetos e políticas que tentam conter o fenômeno, os números da violência são significativos e justificam iniciativas, esforços e pesquisas para a apreensão do tema. Cabe aos educadores interesse em compreender o fenômeno, analisar os dados encontrados na realidade, pesquisar, refletir e desvendar significados, atrelando teoria e prática; abandonar a superficialidade e a ingenuidade e desenvolver senso crítico a respeito do contexto que envolve a violência no ambiente escolar, buscando alternativas que os ajudem a elaborar estratégias de ação e mediação que possam colocar em prática.

Este ensaio, que pretende discutir a problemática da violência nas escolas a partir do pensamento de Hannah Arendt, parte do pressuposto da contemporaneidade e da aplicabilidade da sua teoria para a compreensão da violência. O texto é resultado do aprofundamento de alguns estudos e dos resultados parciais do projeto de pesquisa que atualmente desenvolvo, apoiado pelo Programa de Incentivo a Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC) da Universidade Presbiteriana Mackenzie, ao qual agradeço imensamente.

2. DESENVOLVIMENTO

O século XX foi considerado por muitos pensadores como o século das guerras, das revoluções e, consequentemente, da violência. Na primeira metade do século, as duas Grandes Guerras Mundiais, com seus massacres, torturas, campos de concentração e bombas nucleares trouxeram, como mostra Hannah Arendt (2006) em As Origens do Totalitarismo, cuja primeira edição é de 1951, o fenômeno totalitário e o desenvolvimento da tecnologia armamentista, implementos dos meios de violência. Nesta obra, Arendt apresenta algumas condições para a instauração e manutenção dos movimentos e regimes totalitários. Dentre essas condições, o desenvolvimento de uma sociedade de massa, volúvel, desorganizada, conformista e formada por indivíduos atomizados. O termo massa, para Arendt, aplica-se quando pessoas, devido ao seu grande número ou indiferença política, não se integram em nenhuma organização que partilhe objetivos e interesses comuns. Os líderes totalitários só podem comandar com o apoio das massas, cujos padrões (morais, de julgamento e comportamento) são determinados por influências e crenças gerais compartilhados por toda a sociedade.

Os Estados-nações estimularam a criação de uma população apolítica, um conjunto de cidadãos que não se responsabilizava ou se interessava pelo governo do país e que emergiu com o colapso do sistema de classes e do sistema partidário. O homem-de-massa, embora partilhe com a grande maioria o mesmo destino, muitas vezes atribui a si mesmo o próprio fracasso ou acusa o mundo de injustiça específica. Isolados, individualizados, competitivos, mesmo os homens mais cultos foram atraídos pelos movimentos de massa.

A propaganda de massa (ou a propaganda totalitária propriamente dita) é outra condição para os regimes e movimentos totalitários. Dentre as suas funções, as mais importantes são disseminar as doutrinas ideológicas e as mentiras nas quais se sustenta o regime e organizar as massas.

O totalitarismo também aterroriza e subjulga os indivíduos internamente. A violência é utilizada como um meio para se tomar o poder, mas é transitória, não constitui um fim em si mesma. A ideologia totalitária exerce um papel decisivo na conformação e lealdade das massas ao regime. Esta ideologia insere os sujeitos num ativismo cego e previsível e imprime em tudo um movimento, uma fluidez, caracterizada pela falta de continuidade e pela constante necessidade de adaptação. Apesar da eleição de um inimigo objetivo, a ideologia em si não se vincula a nenhum tema específico, sendo esvaziada de qualquer conteúdo concreto.

A propaganda, a doutrinação e o emprego do terror servem de instrumentos para dar realidade à ideologia, às mentiras e às profecias postuladas, mas as formas de organização totalitárias também colaboram para conferir realidade a um mundo fictício. Toda a sua hierarquia: as organizações de vanguarda (simpatizantes), os membros do partido, as formações de elite, o círculo que envolve o líder e o próprio líder em si, estrutura-se de modo a isolar os indivíduos, de forma cuidadosamente graduada, protegendo-os do mundo exterior, ou seja, cada nível de militância empresta, ao nível subsequente certa aparência de normalidade que diminui o impacto da realidade mas impregna a atmosfera de elementos totalitários. Semelhantes à estrutura e aos padrões morais de organizações secretas ou conspiratórias, a organização do regime funciona

[...] segundo o princípio de que quem não está incluído está excluído, e quem não está comigo está contra mim [e assim] o mundo perde todas as nuances, diferenciações e aspectos pluralísticos – coisas que, afinal, se haviam tornado confusas e insuportáveis para as massas que perderam o seu lugar e a sua orientação dentro dele (ARENDT, 2006, p. 430).


É bem verdade que a propaganda totalitária contraria o bom senso, mas na mentalidade manipulada das massas o bom senso perde a validade.

O totalitarismo tinha como objetivos principais o domínio total e o governo mundial. Alimentava-se a crença de que esse domínio era possível desde que se comandasse os instrumentos de violência e que se utilizassem os métodos da organização totalitária. Para lidar com o problema da coexistência entre governo (estabilidade) e movimento, a solução encontrada foi estabelecer uma legislação que não se respeitava e criar um estado de constante instabilidade, de múltiplas fontes de autoridade e sucessivas transferências de centros de poder, que geravam uma intencional confusão de ordens, destruindo toda e qualquer possibilidade de estrutura. Nas formações de elite (polícia secreta), a existência de diferentes ramificações garantiam a supervisão e a espionagem dos seus próprios membros e de pessoas comuns. A sobreposição de funções e a competitividade entre órgãos não tornava possível nenhum tipo de oposição organizada ou de sabotagem ao regime.

De acordo com Arendt (2006) o domínio total tornou-se possível pela doutrinação ideológica e pelo terror nos campos de concentração onde, fechados ao mundo, os homens eram transformados em coisas. A ideologia totalitária superou o princípio de que “tudo é permitido” convertendo-o na convicção de que “tudo é possível”. Os campos de concentração criados nos regimes totalitários não possuíam qualquer utilidade econômica. O objetivo era matar a pessoa jurídica e moral do homem, eliminando qualquer possibilidade de individualidade, de espontaneidade, de dignidade. O consentimento mudo à existência de uma sociedade de campos de concentração resultou de eventos que tornaram milhões de pessoas supérfluas social e economicamente.

Na segunda metade do século pode-se assistir ao agravamento dos conflitos no Oriente Médio, guerras civis na África e, em plena década de 1990, uma guerra no leste da Europa provou o quanto a humanidade ainda é capaz de atos de genocídio e barbárie. O século XXI não começou de forma diferente: o 11 de setembro de 2001 espalhou o terror pelo mundo e serviu de justificativa a novos conflitos. No Brasil, o Rio de Janeiro vive um problema de segurança pública devido ao tráfico nos morros. Em São Paulo, no ano de 2006, ataques de uma facção criminosa afetaram o cotidiano da cidade trazendo insegurança, medo e mortes. Apenas a breve menção desses eventos nos faz pensar que, mantidas as condições, e muitas delas ainda são observáveis, por exemplo, no individualismo exacerbado e nas políticas neoliberais que se espalharam em todo o mundo, atrocidades que tem como base um profundo desprezo pela vida humana ainda podem acontecer. “As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem” (ARENDT, 2006, p. 511).

As origens do totalitarismo já revela alguns aspectos que Arendt vai aprofundar em A Condição Humana, de 1958. Neste livro, a autora traça um percurso sociopolítico da antiguidade clássica (grega) à sociedade moderna em que analisa as atividades que desempenhamos e que fazem parte de nossas vidas enquanto seres humanos. Dessas atividades, derivadas do seu conceito de Vita Activa: o labor, o trabalho e a ação, toma-se como central a ação. Agir significa iniciar, tomar iniciativa, começar. Ser capaz de agir confere ao homem a característica do inesperado, a singularidade, a possibilidade de realizar o improvável. Ação e discurso estão estreitamente relacionados. Sem o discurso a ação deixaria de ser ação, pois é através da palavra que o ator se identifica, se revela, significa o seu ato e a sua intenção. A ação é a atividade política por excelência e o discurso é o que faz do homem um ser político.

A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto da igualdade e da diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si [...] Se não fossem diferentes [...] os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender (ARENDT, 2005, p. 188).

Atividades típicas da espécie humana, é no discurso e na ação que os homens manifestam a si mesmos aos outros homens. É possível uma existência limitada ao labor do corpo, animal portanto, ou mesmo viver sem trabalhar, sem produzir nada no mundo, mas uma vida sem ação e sem discurso deixa de ser humana. É por meio das palavras que os atos, as experiências humanas ganham sentidos e que se tornam possíveis a vida e o mundo humanos. Somente a violência é muda.

Entretanto, na experiência da polis, “a ação e o discurso separaram-se e tornaram-se atividades cada vez mais independentes. A ênfase passou da ação para o discurso, e para o discurso como meio de persuasão” (ARENDT, 2005, p. 35). Qualquer decisão, na polis, era tomada mediante palavras. O uso da força ou da violência eram considerados modos pré-políticos de se relacionar com as pessoas, típicos do ambiente doméstico, da família.

Assim, ao lar, à casa, à família correspondiam o domínio privado, esfera responsável pelo econômico, pela manutenção do indivíduo, onde o uso da força e da violência justificavam-se, eram necessários. À polis correspondia o domínio público, esfera da liberdade, da política, onde o cidadão grego vivia entre iguais, entre pares, onde não cabia qualquer forma de domínio ou submissão.

O período medieval e o feudalismo organizaram-se e ajustaram as relações humanas nos moldes familiares, levando a uma evolução da esfera privada. Mas foi a modernidade que trouxe a ascendência do social, esfera que em essência não era nem pública, nem privada, mas que passou a dominar o político, alterando e diluindo as fronteiras e os significados entre o privado e o público, sobrepondo os interesses privados na esfera política.

A sociedade moderna, que insistiu em manter a estrutura monárquica já ultrapassada do Estado-nação, assemelhou-se a uma enorme família, buscando sempre uma opinião unânime, um objetivo ou interesse único, comum. Esta opinião unânime, intensificada pelo peso dos números, logo tornou dispensável o poder de um único homem ou grupo de homens em benefício de uma forma mais social e impessoal de governo: a burocracia, facilitada pelo fenômeno do conformismo, inerente à própria sociedade.

Entretanto, política, social e individualmente, esses fatores excluem as possibilidades de ação. A burocracia em si não significa ausência de governo, pelo contrário, pode tornar-se uma das suas versões mais cruéis e tiranas. O conformismo, intimamente relacionado a uma sociedade de massa, única, que controla a todos igualmente, normatizando os membros de um grupo social, substitui a ação pelo comportamento como forma de relação humana, abolindo a ação ou reação espontânea e inovadora.

Quanto maior o número de pessoas que integra um corpo político, maior é a possibilidade que o social constitua a esfera pública. A desintegração da família e a vitória da sociedade moderna substituindo a ação pelo comportamento, o governo pessoal pela burocracia e a disseminação e aceitação da ficção liberal da harmonia de interesses econômicos e políticos (controle do mercado por uma “mão invisível”) apontam para uma sociedade que “[...] transformou todas as comunidades modernas em sociedades de operários e de assalariados; em outras palavras, essas comunidades concentraram-se imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida – o labor” (idem, p. 56).

Curioso é que esta transformação tenha ocorrido em um momento em que a sociedade, pelo desenvolvimento tecnológico, estava prestes a libertar-se do trabalho operário. As contradições são evidentes. Se, por um lado, o trabalho passou a ser glorificado, a ser fonte e caminho de realização e reconhecimento, por outro lado o que se tem hoje é uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, composta cada vez mais por pessoas que não conhecem ou não têm contato com aquelas atividades “superiores” pelas quais valeria a pena ser livre. Se a alienação que advém do trabalho, conforme proposta por Marx, é algo ruim, o abandono, a subcondição e a impotência que consiste em sequer ter um trabalho só pode ser pior. A crise instaura-se, a subsistência, o econômico e a consciência da interdependência ganham status de alta relevância social, muitos debates atuais, inclusive, giram em torno da questão da “sustentabilidade”.

A ascensão da sociedade na modernidade tornou ação e discurso qualidades desvalorizadas, relegadas à esfera do íntimo, do privado. Contudo, o público percebe e ressente-se com a discrepância. Atribui-se a capacidades individuais, psicológicas, esta defasagem entre competências técnicas e desenvolvimento humanístico geral. Esta interpretação desconsidera, entretanto, que qualquer atividade só se desenvolve quando o mundo proporciona espaço e valoriza a sua prática. Não há qualidade, atributo, ou talento que atinjam a excelência sem a devida relevância e valorização pública.

Hannah Arendt caracteriza o público por dois fenômenos: o que vem a público e, portanto, pode ser validado pela presença do outro e adquirir o status de realidade; e o próprio mundo, o que é comum a todos, produto de mãos humanas, “[...] o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens” (idem, p. 62). A existência do mundo é um fenômeno político. Ser visto e ser ouvido pelos outros, partilhar ângulos e opiniões diferentes é o próprio significado da vida pública. A realidade é garantida pela percepção, pelo consenso acerca da identidade de determinado objeto. O termo privado deriva da “privação”, de um homem privado da relação com outros homens, da realidade que advém de ver e ser visto, privado das coisas verdadeiramente humanas; um homem que vive em isolamento é como se não existisse, está impossibilitado de realizar algo permanente, qualquer ação sua não tem consequência nem importância para os outros, vive em solidão, preso a um subjetivismo que tende a destruir o mundo comum.

Embora o tema da violência perpasse toda a obra de Arendt, em 1969, a autora publica Sobre a violência. Neste livro, ao buscar as causas do fenômeno, Arendt afirma que a diminuição do poder, seja individual, coletivo ou institucional, é sempre um fator que pode levar à violência. “[...] muito da presente glorificação da violência é causada pela severa frustração da faculdade de ação no mundo moderno” (ARENDT, 2001, p. 60). A burocratização da vida pública, a transformação do governo em administração, os processos de desintegração, o declínio dos serviços e instituições públicas, a automatização dos negócios entre os homens, o conformismo, o subjetivismo, têm aberto fendas nas estruturas de poder, têm afetado e suprimido a ação humana.

O ineditismo das reflexões de Arendt sobre a violência consiste em redefini-la frente ao poder. Tradicionalmente, poder, dominação e violência foram vistos como sinônimos, como resultantes um do outro. Entretanto, Arendt entende o poder como “[...] a habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido.” (idem, p. 36). Já a violência, de caráter instrumental, é a dominação, a obediência obtida pela coerção. “O domínio pela pura violência advém de onde o poder está sendo perdido” (idem, p. 42), daí a autora afirmar que a diminuição no poder é sempre um fator que pode levar à violência.

Celso Lafer, um dos mais importantes estudiosos e comentadores da obra e do pensamento arendtiano no Brasil, em seu livro Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder, de 1979, reforça o caráter relacional do poder em Arendt. Essa relação, resultado de um diálogo cujo objetivo é estabelecer um acordo, forma uma “vontade comum”, uma concordância quanto a um curso comum de ação, que torna possível o agir em conjunto. É somente no espaço público de uma comunidade política, através do exercício livre da cidadania e da comunicação alicerçada na verdade factual, que um consenso quanto a um curso de ação pode ser democraticamente obtido e, com ele, a geração de um poder legítimo. Quando o espaço público da palavra e da ação deixa de existir, ou quando a verdade é mascarada pela hipocrisia, o estabelecimento de um curso comum de ação torna-se impossível, o resultado pode ser a violência.

Transpondo tais aspectos da teoria arendtiana para o campo educacional, pode-se vislumbrar a dimensão e abrangência de aplicação do seu pensamento. Segundo Krawczyk e Vieira (2003), nas políticas educacionais o que se vivencia hoje no Brasil é o resultado das reformas iniciadas na década de 1990, cujo ponto de partida, adotado pelas autoras, é a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien. Os debates acerca do estabelecimento de princípios e diretrizes comuns para a obtenção de uma educação básica de qualidade legitimaram a idéia da educação como condição para equidade social e como estratégia para o desenvolvimento econômico em tempos de mundialização e globalização. Segundos as autoras, as reformas educacionais propostas foram marcadamente homogêneas e homogeneizadoras, desconsiderando-se as especificidades de cada país, e apresentaram a ressignificação do papel do Estado como estratégia necessária ao desenvolvimento e ao sucesso na implantação de tais reformas. A exigência foi a reconfiguração dos Estados nacionais de caráter keynesiano, reguladores e provedores em Estados fortes (na sua capacidade de romper com o modelo estabelecido), e minimalistas (nas intervenções econômicas e nos investimentos sociais). Nos países em desenvolvimento, particularmente na América Latina, a crise identitária do papel do Estado é deflagrada. Historicamente, os Estados nacionais nos países latino-americanos constituíram-se de formas diferentes, peculiares a cada contexto, mas pode-se afirmar que, de maneira geral, nenhum desses países chegou a ter um Estado de Bem Estar Social, verdadeiramente provedor de políticas públicas sociais e assistenciais, ao contrário, países como o Brasil, o Chile, o México, a Argentina, passaram por regimes ditatoriais que duraram até meados das décadas de 1970 e 1980 e pouco atenderam às demandas das suas populações. Durante a década de 1990, muitos desses Estados, em processo de (re)estruturação, em busca da modernização e da (re)democratização, acataram as diretrizes educacionais propostas e deixaram permear, com maior ou menor intensidade, ideais neoliberais nos seus sistemas educacionais, área que deveria estar atrelada à identidade e à cultura de cada país, dobrando-se novamente aos interesses internacionais, a estratégias neocolonizadoras - o enfraquecimento do Estado nos países em desenvolvimento, obedecendo à lógica de mercado, tem como objetivo facilitar o usufruto dos bens e possibilidades desses países.

As diretrizes nacionais e internacionais em educação constituem, assim, um aparato legal que, apesar da proposta descentralização, inauguram uma nova estratégia centralizadora que espalha políticas de cunho neoliberal e homogeneizador, que regulam e controlam, em nível regimental, o “microcosmo” (escola). O suposto “consenso” ou a alta representatividade obtida em tais dispositivos legais podem perfeitamente ser encarados como a proposta educacional dos países com maior poder de argumentação e negociação em relação aos países mais pobres. Alguns conceitos e termos que frequentemente utilizamos para embasar e justificar as nossas iniciativas em educação, ganham frequentemente novos significados na confusão que se estabelece quando o discurso político defende o consenso, fingindo atender às necessidades dos atores locais ou às demandas da população, mas traz outras intencionalidades, obedecendo, na verdade, aos interesses de determinados grupos ou à lógica do mercado. Ao estabelecer correlações entre educação e produtividade, afirmando a educação como fator de crescimento e desenvolvimento econômico, social e cultural, como instrumento para enfrentar os desafios do mercado mundial, a função social da educação desloca-se do ser humano para a manutenção de uma ordem político-social capitalista. Em detrimento à descentralização, o caráter homogêneo das reformas enfatiza a gestão e culpabiliza os atores locais pelo eventual fracasso que possam enfrentar (KRAWCZYK, VIEIRA, 2003), o sistema educacional encontra-se burocratizado.

Evidentemente, o princípio da descentralização pode ser tomado como algo positivo, pois permite espaço de atuação da sociedade civil. É inegável que a sociedade civil ganhou espaço em diversas instâncias, inclusive na área da educação. No entanto, cabe-se um questionamento sobre como se constitui e quem representa a sociedade civil organizada no Brasil. Infelizmente, a iniciativa privada, ou as empresas, compõem grande parte do que se denomina sociedade civil no nosso país, são interesses e intenções privadas atuando e participando da tomada de decisões políticas.

De acordo com Aquino (1998), a justaposição escola/violência tem, como efeitos concretos, a indisciplina, a turbulência ou apatia nas relações, os confrontos velados, as ameaças de diferentes tipos, a depredação e a exclusão. No meio educacional, duas tônicas fundantes são comumente utilizadas para problematizar os efeitos de violência (simbólica ou concreta) verificados no cotidiano escolar contemporâneo, uma de matiz sociologizante e outra de matiz clínico-psicologizante. Em ambos os casos a violência seria um fenômenos cujas causas encontram-se externas à escola, restando aos educadores e profissionais da escola a resignação, o desconforto e a desincubência – a palavra de ordem seria o encaminhamento ou, em casos mais extremados, a expulsão.

A esta configuração, o autor propõe, como alternativa, um olhar institucional sobre a violência. Aquino (1998) defende a idéia de instituição como um conjunto de relações e práticas sociais em torno de um objeto específico e pensa a estrutura macrossocial mais como uma rede de relações inter-institucionais do que como um conjunto de instituições que seguem, todas, determinações macroestruturais únicas.

Assim, a escola, enquanto instituição, não só reproduz relações extra-escolares, mas constitui-se como agente, dotado da possibilidade de levar a mudanças dentro do seu espaço de atuação. Aquino (1998) descarta a possibilidade de existência de um sujeito, de um indivíduo padrão, universal. O processo de formação de uma pessoa acontece sempre em um determinado contexto, na relação com outras pessoas, o que consagra a escola como instituição formadora. Um olhar institucional sobre a violência escolar implica: abandonar leituras totalizadoras; situar o fenômeno (da violência) no cenário escolar; descrever e analisar o fenômeno tomando como base as relações institucionais que o retroalimentam (em especial a relação professor-aluno). O autor afirma que

Grosso modo, poder-se-ia concluir que, de um ponto de vista institucional, não há exercício de autoridade sem o emprego de violência, e, em certa medida, não há o emprego de violência sem exercício de autoridade. Portanto e em suma, a violência como vetor constituinte das práticas institucionais teria como um de seus dispositivos nucleares a própria noção de autoridade, outorgada aos agentes pela clientela/público, e avalizada pelos supostos “saberes” daqueles. Por essa razão, reafirmamos a convicção de que há, no contexto escolar, um quantum de violência “produtiva” embutido na relação professor-aluno, condição sine qua non para o funcionamento e a efetivação da instituição escolar (AQUINO, 1998, p. 15).

Aquino (1998) fornece, assim, as pistas de como, no contexto administrativo-pedagógico, na própria unidade escolar, a teoria de Arendt, especialmente da sua obra, Entre o passado e o futuro, de 1954, aponta para uma importante retomada da finalidade da educação escolar, ou seja, a inserção das novas gerações no mundo, no conhecimento, na cultura, nas tradições. Arendt defende a dimensão conservadora do ato educativo. Educar é apresentar o mundo às novas gerações. “Face à criança, é como se ele [o professor, o educador] fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: – Isso é o nosso mundo.” (ARENDT, 1992, p. 239). Cabe às gerações adultas respeitar o passado, a tradição, a cultura, e proteger as novas gerações do mundo bem como o mundo das novas gerações. Nesse sentido, a ética e o seu conceito de autoridade são fatores importantes na relação entre professores e alunos. Componente fundamental nas relações humanas ou institucionais, a autoridade pode ser investida em pessoas ou em cargos. “Sua insígnia é o reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede que obedeçam; nem a coerção nem a persuasão são necessárias” (ARENDT, 2001, p. 37). A autoridade está pautada no respeito. “A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém, sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo” (ARENDT, 1992, p. 239). A autoridade deve, então, ser entendida como princípio norteador das relações interpessoais nas escolas, a serem pautadas pela ética (AQUINO, 1998; BOTO, 2001).

Aquino concorda com Arendt quando afirma que a única estratégia fecunda para enfrentar a crise ético-paradigmática que afeta a educação contemporânea nas nossas escolas é o respeito pelo passado, pela tradição presente na nossa cultura. A escola, bem como a aprendizagem, voltam-se para o passado, pois “não há possibilidade de futuro plausível sem a imersão no processo histórico dos diferentes campos do conhecimento” (AQUINO, 1998, p. 16). É preciso conservar o patrimônio cultural para transformar.

Percebe-se que, nas unidades escolares propriamente ditas, a questão da reprodução da violência externa é bastante complexa, mas as escolas também produzem a sua própria violência. Os muros e grades, a disciplinarização do tempo, do espaço, dos corpos, da linguagem, do pensamento, a verticalidade das relações, as normas, o controle, a vigilância, as punições, a avaliação, a separação, a exclusão. Elementos típicos do ambiente escolar, elementos típicos de hierarquização e autoritarismo, elementos passíveis de gerar a violência. Neste contexto, a organização de espaços de ação, de discurso, de exercício e participação política dos agentes que compõem a comunidade escolar é imprescindível. Esses espaços poderiam ser assegurados por uma gestão efetivamente participativa e pela criação e manutenção de verdadeiros conselhos nas unidades escolares, que permitissem um agir coletivo (AVRITZER, 2006). Dessa forma, a educação escolar poderia não somente minimizar a violência que produz, como colaborar para a formação de cidadãos críticos, capazes de participar, de agir nas instâncias políticas locais.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É certo que o tema não se esgota aqui. Ao contrário, esses são os primeiros passos de um longo caminho a ser percorrido. Contudo, já é possível visualizar o desafio. A violência, por si só, é um conceito polissêmico e o simples fato de ganhar o adjetivo “escolar” não facilita nem reduz a abrangência e a complexidade do termo ou mesmo da temática.

A adoção de Hannah Arendt como referencial teórico deve-se, principalmente, à recusa em aceitar certas correntes de pensamento que postulam a violência como algo inerente à natureza humana. É preciso romper com algumas ideologias que tendem a naturalizar o que é social e historicamente construído. Essa adoção revela, também, a intenção de analisar o assunto a partir de uma concepção sócio-política e filosófica, congruente, sobretudo, com a visão do ato educativo como processo da mesma natureza.
Torna-se urgente compreender que o contexto “micro” de sala de aula e da escola está relacionado ao contexto macroeconômico, político e social; torna-se imperativo reavaliar e adjetivar conceitos como: cidadania, participação, igualdade, liberdade, emancipação, autonomia, política, democracia, espaço público e privado, sociedade civil, soberania, constantemente impactados por certas ideologias. O (re)conhecimento dessa realidade não deve imobilizar, mas conscientizar, politizar, levar os profissionais da educação a uma prática comprometida, crítica e atuante, em busca de melhorias.

Além de atentar para as suas relações com o contexto mais geral, é preciso que as escolas revejam os seus objetivos, os processos internos que desenvolvem, o tipo de gestão que adotam. É salutar que todos, na unidade escolar (incluindo-se a comunidade local interessada) repensem, reflitam, questionem a finalidade da educação, dos processos que levam a cabo, dos conteúdos e metodologias que elegem. Essa sugestão não é simples de ser seguida, a tomada de decisões no coletivo leva tempo e o resultado nem sempre é o esperado, mas o tempo da educação não é o tempo da produção e, no espaço escolar convém fornecer a oportunidade para que todos participem.

Sabe-se que, ao aproximar o pensamento arendtiano e o contexto educacional brasileiro, é preciso desvelar continuidades, rupturas e buscar as devidas ressignificações, mas até o presente momento, sustenta-se a hipótese de que, entendendo-se a escola como instituição social e a educação como fenômeno sociopolítico, a teoria arendtiana traz relevante contribuição para a compreensão da violência escolar, ressignificando as possibilidades de ação, participação política e exercício democrático no interior das unidades escolares contemporâneas. Esta contribuição aponta caminhos e alternativas para lidar com a questão da violência nas escolas na medida em que espera-se que quanto mais democrático for o processo de gestão praticado em uma escola, maiores serão as possibilidades de diálogo, ação, participação e consenso e menor será a ocorrência de casos de violência.

Mas, considera-se profundamente contraditório chamar as pessoas à participação política sem oferecer-lhes acesso à informação, à cultura, ao conhecimento historicamente produzido pela humanidade, a uma educação de qualidade. Constitui uma forma de violência privar deliberadamente as pessoas dos seus direitos. O acesso ao conhecimento, a educação é o que possibilita levar o pensamento do nível da opinião ao nível da reflexão. Agir sem conhecimento, ação desvinculada de reflexão é mero ativismo.

Por isso, também, é inaceitável que se postule que a filosofia é algo desnecessário nos cursos de formação de professores. Filosofia não é somente “erudição” ou “intelectualismo”, é o inquirimento sistemático, é a busca constante do saber, do conhecimento, é instrumento que fornece condições para desvelar discursos ideológicos, lacunas e contradições muitas vezes presente nos contextos e nas políticas educacionais, a filosofia questiona os fundamentos da educação, é, portanto, indispensável aos educadores.

Impressiona, ainda, que a violência escolar não seja frequente e devidamente abordada nos cursos de formação de educadores, independente do nível ou da faixa etária a qual se destine a docência. Discussões ou reflexões no coletivo, sobre a violência, fazem-se necessárias para, ao menos, preparar os futuros educadores para uma realidade que podem encontrar.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O início da jornada

O interesse em estudar a temática da violência escolar surgiu, inicialmente, das minhas experiências e vivências no âmbito acadêmico e profissional, da participação em diversos contextos escolares e da perplexidade com que observo o crescente fenômeno da violência nesses contextos. Ao criar este blog, divido algumas idéias, pensamentos e leituras sobre o tema e tenho a expectativa de encontrar comentadores, pessoas que também tenham interesse no assunto, que queiram compartilhar relatos, depoimentos, fatos, que dêem sugestões ou que elaborem críticas. Este é apenas o início da minha caminhada e estou certa de que há muito a aprender. Inicio a jornada...